O QUE É A TERCEIRIZAÇÃO
A Terceirização em Perguntas e Respostas: Tentando Diminuir as
Confusões
(*) Márcio Túlio Viana
Uma breve explicação
Esse artigo - pequeno e singelo - tenta deixar mais claro o
fenômeno da terceirização. Para isso, faz sete perguntas: 1) O que é terceirização? 2) Como distinguir as formas de
terceirizar? 3) De onde vêm as
terceirizações? 4) Quais os sentidos das terceirizações? 5) Quais os efeitos
das terceirizações? 6) Como enfrentar as
terceirizações? 7) É interessante ampliar as hipóteses de terceirização
interna?
Para respondê-las, o artigo repete
algumas colocações antigas, mas
acrescenta as últimas conclusões do autor, na esperança de diminuir as confusões.
Naturalmente, os pontos de vista
aqui formulados podem não ser os melhores. Por mais que já se tenha pensado
sobre o tema, existem pontos que merecem, talvez, maior reflexão. Por isso, naturalmente, críticas e contribuições serão sempre bem
vindas.
1.
O que é
terceirização?
Em nossa língua, essa palavra
costuma ser usada em dois sentidos. Refere-se a duas realidades diferentes. E é
aqui, exatamente, que começam as confusões. È muito comum, por exemplo, uma
pessoa criticar as terceirizações imaginando uma de suas formas, e outra pessoa defendê-las pensando em outra de suas formas. (1)
Alguém se lembra, por exemplo, dos
trabalhadores terceirizados que fazem faxina em escritórios, e afirma em tom
enfático:
- Sou radicalmente contra a terceirização, pois ela cria uma subclasse
de trabalhadores!.
O outro pensa então nos que trabalham em empresas
subcontratadas (ou seja, em forma de rede), e contesta:
- Não vejo como obrigar uma
fábrica de carros a fabricar todas as suas peças, do radiador aos pneus,
inserindo num só lugar todos os trabalhadores!
Na verdade, o ideal seria
encontrar uma segunda palavra para indicar o segundo desses fenômenos. A essa
altura, porém, a palavra “terceirização” -
com seus dois sentidos - já se incorporou de tal modo em nosso
vocabulário, que o melhor parece ser adjetivá-la.
Foi o que ensaiamos há já bastante
tempo, num primeiro esforço de classificação, chamando uma de “interna” e a outra de “externa”. Na
primeira, a empresa traz trabalhadores alheios para dentro de si. Na segunda,
joga para fora de si não só trabalhadores seus, como etapas de seu ciclo produtivo.
Uma e outra podem ser vistas como
faces de um mesmo fenômeno. Ainda assim, têm componentes diferentes, geram
efeitos nem sempre iguais e podem ser combatidas por meios também distintos. Além
disso, como veremos, as próprias palavras “externa” e “interna” merecem uma
nova observação.
2.
Como
distinguir as formas de terceirizar?
Vimos que, na terceirização
interna, a empresa realmente internaliza
trabalhadores alheios – como acontece no trabalho temporário, nas empresas de
asseio e conservação e, de um modo geral, nas que exercem a atividade meio de
suas contratadas. Assim, a empresa A quer se dedicar só à fabricação de
parafusos, livrando-se de seu pessoal de escritório, e então contrata a empresa
B, que lhe fornece esse mesmo pessoal.
Já na terceirização externa, a
empresa quer, de fato, externalizar etapas de seu ciclo
produtivo – como acontece há muito tempo na indústria de automóveis e hoje é
prática cada vez mais disseminada no setor produtivo. Assim, a empresa A, que antes fazia um relógio inteiro,
hoje faz só a sua máquina, descartando a pulseira para B e as peças de plástico
ou de vidro para C.
Acontece, no entanto, como já
dizíamos, que mesmo essa divisão em “interna” e “externa” – por sugerir lugares diferentes - pode gerar alguma confusão,
É que, às vezes, a empresa usa
trabalhadores alheios, mas que não ficam dentro
dela. É o que acontece, por exemplo, em setores de call-center. Outras vezes, inversamente, a empresa descarta etapas
de seu ciclo produtivo, mas suas parceiras não ficam fora dela, e sim na mesma
planta. É o que às vezes sucede na
própria indústria automobilística.
Desse modo, para entendermos
melhor as diferenças e os significados
das duas formas de terceirizar, talvez seja interessante voltar a uma velha e
sábia lição de Olea, ao comparar o trabalho por conta própria com o trabalho
por conta alheia (2).
No trabalho por conta própria, o
produto pertence ao trabalhador do início ao fim do processo produtivo. O
artesão faz o seu cesto de vime e só num segundo momento o transfere – se
quiser – para as mãos do comprador.
Já no trabalho por conta alheia,
o produto vai passando imediatamente para o empresário, em tempo real, na medida
em que está sendo fabricado. É como se, pouco a pouco, o cesto do artesão fosse
escorrendo de suas mãos e encontrando as mãos do outro.
Pois bem. A terceirização externa
lembra o trabalho por conta própria. Uma empresa contrata a outra, mas o que
lhe interessa é o produto final. Por isso, só ao término da produção passa a
ter propriedade sobre ele. Já a terceirização interna se articula com o
trabalho por conta alheia. A empresa tomadora vai se apropriando do trabalho
dos terceirizados na medida em que eles o executam.
3.
De
onde vêm as terceirizações?
A pergunta não atende a mera curiosidade.
É muito importante fazermos uma breve viagem ao passado, pois só assim o Leitor
poderá entender o nosso pensamento e a realidade atual. Por isso, pedimos cinco minutos de sua
paciência.
Pois bem. Quase dois mil anos
atrás, na Grécia, já havia empresas que alugavam escravos para outras – em
geral, para o trabalho das minas. Mas o período mais interessante, para o nosso
estudo, é o que antecede o capitalismo industrial – mais ou menos entre os
séculos XVI e XVIII.
O que acontecia,
então?
Entre várias outras práticas,
passou a ser comum, já naquele tempo, um modo de produzir bem parecido com a rede de empresas de hoje. O capitalista
– que não tinha ainda sua fábrica – despejava matéria prima (em geral, tecidos)
nos lares camponeses, e depois os recolhia, prontos para ser tingidos e depois
vendidos.
É claro que, muitas vezes, o que
havia era verdadeiro trabalho a domicílio, com todos os pressupostos que hoje
vemos na relação de emprego. Ainda assim, nem sempre isso ocorria, e a
organização geral, como dizíamos, era bem próxima à da atual produção em
cadeia. No mínimo, podemos ver, já
naquela época, uma forma embrionária de terceirização externa.
Pouco a pouco, no entanto, esse
modo de produzir foi-se tornando incompatível com o mercado nascente - e que se fazia cada vez mais exigente. Era difícil racionalizar aquela espécie de fábrica difusa(3), cujos trabalhadores
se dispersavam em grandes áreas, mal servidas por estradas, e escondiam os
gestos de trabalho entre as quatro paredes de suas casas. Além disso, não
estavam habituados a horários, nem seguiam outras formas de comando, O resultado é que nem sempre entregavam o
produto a tempo e a hora, com a qualidade desejada, e não raras vezes desviavam ou surrupiavam
matéria prima, compensando desse modo os seus salários de fome.
Foi por isso – ou também por isso – que o capitalista,
tempos depois, organizou sua fábrica –
já agora uma fábrica inteira, verdadeira, de cimento e tijolos. Ali, entre aquelas
novas paredes – que eram de propriedade dele, não dos operários - ele podia muito mais facilmente disciplinar
os corpos (4) e
racionalizar a produção. Quem passava pela porta de entrada deixava com o
porteiro uma boa fatia de liberdade.
No início, o capitalista procurou
os rios – às vezes fora das cidades – para aproveitar a força motriz das águas.
Ele próprio morava ali, como um novo senhor do castelo, e as relações com os
trabalhadores conservavam, em regra, os mesmos
traços paternalistas do passado.
Além disso, como era ainda
difícil contratar, selecionar e dirigir o pessoal, ele recorria com frequência
a intermediários – os gatos de hoje -
que arrebanhavam não só camponeses e artesãos,
mas crianças (que podiam ser os seus próprios filhos), mães solteiras, mendigos
e desocupados de toda espécie. Em geral, esse mesmo intermediário chefiava o seu
grupo, como uma espécie de capataz. Era uma forma – também rude – de
terceirização interna.
Com o tempo, também isso mudou. O
empresário foi-se tornando mais organizado, mais profissional, e se pôs ele mesmo a escolher, treinar e comandar
o seu pessoal. . Ao fazê-lo, também atendia às exigências crescentes do
mercado, pois radicalizava o
disciplinamento e com isso aumentava não só a produtividade e a qualidade do
produto como a extração de sua mais-valia.
Acontece que a fábrica, criada assim, gerou uma contradição inesperada. Ao juntar os
trabalhadores num mesmo local, acabou fazendo com que eles se vissem melhor,
como num espelho, partilhando emoções e aprendendo a conspirar.
E a consequência foram as greves,
o sindicato e – em última análise – o próprio Direito do Trabalho. Não fosse
aquela contradição, ele dificilmente teria nascido como nasceu, mesmo se levarmos em conta sua utilidade para
o próprio sistema. Aliás, o sistema não
precisaria dele - ou tanto dele - como de fato precisou.
Naquele tempo, a contradição
criada pela fábrica parecia invencível. Afinal, era preciso reunir para produzir, e o ato de reunir os corpos tinha como efeito unir corações e mentes. Com o passar do
tempo, porém, o sistema foi inventando vários
modos de reduzi-la, fosse influindo –
ideologicamente - naqueles mesmos
corações e mentes, fosse cooptando o próprio sindicato, ou cedendo os anéis para não perder os dedos.
Hoje, a tecnologia (5) permite
ressuscitar as duas formas de terceirização – e superar, desse modo, a
contradição que a fábrica criara. Em
outras palavras, já é possível produzir
sem reunir, sem os inconvenientes de antes. E, mesmo quando reune (fisicamente) a fábrica
consegue desunir (subjetivamente), opondo
terceirizados a não terceirizados, na medida em que uns e outros ora se
invejam, ora se temem, dependendo da posição que eventualmente ocupam. Assim, as duas formas de terceirizar se
completam.
É claro que há outros fatores em
jogo. Nossa análise é sintética e (nesse sentido) reducionista. Em linhas
gerais, porém, podemos concluir que, no limite, a terceirização externa supera
aquela contradição principalmente em termos objetivos
(produzir sem reunir), ao passo que a interna a supera principalmente em termos
subjetivos (reunir sem unir).
4.
Quais
os sentidos das terceirizações?
Vejamos primeiro a externa.
Na aparência, não há diferença entre essa forma de
terceirizar, hoje tão comum, e a que vem fazendo – desde meados do século
passado – a indústria de automóveis. O
que haveria de novo, na empresa em rede, parece ser apenas a disseminação
dessas práticas, aliada à possibilidade (bem maior) de ingerência de uma
parceira nas outras.
No entanto, o que a indústria de
automóveis aprendeu a fazer, desde meados do século passado, não parece ter tido o propósito – ou pelo
menos o propósito principal – de
fragmentar a classe trabalhadora ou precarizar as condições de salário e
trabalho. Na verdade, naquele tempo, era
outra a lógica da política econômica, e mesmo a da política empresarial. O
capitalismo saía de uma grave crise, o modelo soviético ainda era uma ameaça, e
os direitos de segunda geração (ou dimensão) ganhavam força. A ideia era
repartir renda, transformando (praticamente) todo homem em trabalhador, todo
trabalhador em empregado e todo empregado em consumidor, e desse modo realimentando
o ciclo. Em outras palavras, a contradição era vista e enfrentada de outras
maneiras. Além disso, a produção em larga escala dependia tanto do braço
humano que nem mesmo a fragmentação do
processo produtivo impedia a formação de grandes contingentes operários, tanto
nas montadoras como nas fábricas de autopeças.
A terceirização externa era,
assim, não tanto um modo de dividir e precarizar (ou dividir para precarizar), mas uma necessidade
imposta pela complexidade crescente do produto e pelas exigências também
maiores do consumo. Em outras palavras, já não era viável – por razões técnicas ou
análogas - reunir toda a fabricação
do automóvel num único lugar, do
mesmo modo que nunca foi possível produzir todos os nossos bens de consumo numa
única fábrica.
Hoje, porém, a política econômica
é outra, a política das empresas também. Os direitos de primeira geração passam
à frente dos de segunda, quando não os atropelam (6). Assim, entra em cena a
ideia de resolver de uma vez por todas
a contradição original - e em seus dois aspectos, objetivo e subjetivo. E o instrumento (re)encontrado, como vimos, é a terceirização, também em suas duas formas.
Se ela já foi possível, mas depois se inviabilizou, hoje volta a ser possível,
e por isso se expande.
No caso específico da
terceirização externa, a razão pode não ser apenas
esta. Afinal, a razão antiga – ligada à tecnologia – permanece, e até se
acentua. Todos os produtos – não apenas o automóvel – vão se tornando cada vez
mais complexos e sofisticados, e por isso a tendência às especializações passa
a ser cada vez mais forte. Só para dar alguns exemplos banais, não se pode
pretender que uma fábrica de bicicletas produza os selins e a campainha, e
menos ainda que uma fábrica de computadores construa os seus chips ou mesmo os softwares.
No entanto, como dizíamos, nem
sempre isso acontece, e mesmo quando é assim o útil vem junto com o agradável:
a fábrica simplesmente se aproveita
da antiga razão que levou a indústria de automóveis a se fragmentar (necessidade de especialização) para atender
ao objetivo (não confessado) de dividir a classe operária e - até por
consequência disso - precarizar salários
e condições de trabalho.
Já no caso da terceirização interna - salvo uma ou outra possível exceção – inexiste
sequer aquela primeira justificativa. A fábrica de parafusos que usa
trabalhadores alheios em seus escritórios poderia muito bem utilizar os dela; não se
confunde com a fábrica de aviões, que precisa usar os produtos – computadores,
por exemplo – de outra fábrica.
Aqui, nem sequer a razão da
eficiência pode servir de pretexto, já que, como se sabe, o trabalhador
terceirizado – por suas próprias circunstâncias - não tem o mesmo apego ao
trabalho ou à empresa onde presta serviços. Assim, a terceirização interna revela de forma ainda
mais clara o objetivo de superar aquela grande contradição que o sistema criou.
5.
Quais
os efeitos das terceirizações?
No plano dos fatos, como
dizíamos, as duas terceirizações tendem a resolver – também de duas formas – o
dilema histórico da fábrica, que sempre se viu forçada a reunir para produzir, sem poder evitar a união nascida da reunião, com todas as suas consequências. Em
termos mais imediatos, servem como luva à implementação da onda neoliberal, que
bate de frente com o sindicato e sua proposta de direitos crescentes.
É verdade, como também dizíamos,
que aquelas consequências – que em última análise podem ser resumidas no
próprio Direito do Trabalho – também são úteis ao o sistema (7). No entanto, como escreveu alguém,
o capitalismo é hoje capaz de sobreviver com um número bem menor de
consumidores, graças ao aumento de riqueza dos que já eram ricos; e pode se dar
ao luxo de ir diminuindo, a seu critério - e na medida de sua conveniência - os
limites, os conteúdos e a própria essência daquele ramo do Direito.
Em regra, as duas formas de
terceirização aviltam salários, degradam o ambiente e fragmentam a classe
operária. Mas há uma diferença entre elas, no plano dos fatos.
Na terceirização externa, as
indignidades podem estar ou não presentes, e mesmo quando presentes podem variar de grau.
Para o trabalhador, pode até ser indiferente trabalhar na fábrica que monta
bicicletas ou na que produz a corrente, a campainha ou os selins.
É verdade que, na empresa em
rede, a precarização é hoje um fato comum; e essa pode ser, com frequência, a
razão principal ou única de sua própria existência enquanto rede. É que a
tecnologia permite – de forma muito melhor do que antes – o controle (recíproco
ou vertical) entre as parceiras, o que garante a unidade real do processo
produtivo; e desse modo também viabiliza as formas pequenas, ocultas e
disfarçadas de fabricação dos produtos. Hoje, até uma fabriqueta de fundo de
quintal – ou uma fazenda com trabalho escravo - pode servir à grande e
hipermoderna empresa capitalista.
No entanto, o que queremos dizer
é que – por mais comum que seja - a precariedade não é um componente estrutural, essencial ou mesmo necessário à
terceirização externa.
Já no caso da terceirização
interna – para além dos salários baixos, ou das más condições de saúde e
segurança – o que há é a comercialização pura e simples do homem. A empresa o
aluga ou arrenda a quem lhe aprover, ganhando na troca.
Entenda-se: o que se comercializa
já não é a força de trabalho, mas o homem que trabalha, com todas as suas carnes e ossos. Nesse sentido, a
terceirização sempre precariza. Se o
capital tem por lógica transformar tudo
em mercadoria, agora ele rompe a última
barreira, chega ao último reduto, atinge o seu climax, o seu ponto absoluto, e desse modo se torna –
digamos assim - coerente por inteiro.
É verdade que mesmo na
terceirização externa o homem pode ser tratado como mercadoria, ou como bicho,
e as várias formas de trabalho escravo também nos mostram isso. No entanto, uma
coisa é ser tratado assim, como se não tivesse direitos, e outra é se tornar de fato uma mercadoria, respaldada pelo
direito, por mais que os efeitos materiais possam ser parecidos.
A propósito de algumas desssas
consequências, vale a pena ler a dissertação de mestrado de Grijalbo Fernandes Coutinho,
ex-presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho –
ANAMATRA – e uma das maiores autoridades no assunto (*) [1]. Em belo trabalho
de pesquisa - orientado pela Professora
Daniela Muradas, da UFMG - ele nos
mostra com dados impressionantes como os acidentes de trabalho, por exemplo,
têm atingido muito mais os terceirizados que os trabalhadores comuns. Só na
Copa do Mundo, dos 12 operários mortos na construção dos estádios, 11 eram
terceirizados!
Por outro lado, as duas formas de
terceirizar também se distinguem quanto aos efeitos jurídicos. A terceirização interna é regulada por algumas leis esparsas
e mais completamente pela Súmula no. 331, do TST (que tambem se refere àquelas
leis). A terceirização externa encontra abrigo no art. 2º § 2º, da CLT, que
trata do grupo de empresas.
6.
Como
enfrentar as terceirizações?
No mundo (capitalista) em que nós
vivemos, não há como proibir as terceirizações externas. Aliás, a essa altura
do desenvolvimento humano, até mesmo em outro sistema econômico isso parece
inviável. Como impedir que as fábricas de aviões, relógios ou televisões
comprem vidros, poltronas ou computadores de outras fábricas? E se é assim
hoje, o que não será no futuro, quando estaremos cercados de produtos ainda
mais complexos e sofisticados?
Uma possibilidade teórica seria
distinguir entre as empresas que precisam
e as que não precisam, efetivamente, fragmentar o seu ciclo produtivo. Em outras
palavras, separar, de um lado, as que querem apenas produzir, e não têm como
fazê-lo sozinhas, por questões técnicas ou análogas; e, de outro, as que buscam apenas superar aquela
contradição, dividindo a classe operária e atingindo o Direito do Trabalho.
Talvez isso seja possível em
casos-limite, quando a empresa, por exemplo, deixa de produzir o que antes
fazia diretamente, e a própria singeleza do produto – digamos, uma garrafa de
plástico – deixa bem claro que não há outro objetivo, senão o de precarizar. E
há também, naturalmente, os casos de fraude, em que o empregador financia
um testa de ferro – que pode
ser um empregado seu – e o transforma
em “parceiro”; ou quando contrata alguém (ou uma empresa) sem a menor
idoneidade econômica, à semelhança do que acontece com as falsas parcerias.
De um modo geral, porém, não nos
parece que essa ideia seja viável, na prática – mesmo porque, quase sempre, as coisas se
misturam, os objetivos se casam. Mesmo tendo que se fragmentar, em razão da natureza do produto, a fábrica de
automóveis ou de bicicletas - nos tempos de hoje - quer também dividir a classe
trabalhadora.
Desse modo, o que nos resta é criar
instrumentos para reduzir os estragos, tanto no plano não jurídico – redes
sindicais globais, por exemplo – quanto no plano juridico – aplicando-se à
hipótese, como dizíamos, a figura do grupo de empresas, ainda que tenhamos de
ampliar (doutrinariamente) o seu conceito. Com isso, a simples existência da
rede já seria suficiente para que todas as parceiras fossem solidariamente
responsáveis; e o empregador real seria o grupo.
Já no caso da terceirização
interna, seria possível – e necessário -
proibi-la em todos os casos, o que certamente não afetaria a produção industrial, e muito menos as nossas
vidas. Mas como, na prática, o atual contexto parece desfavorável, devemos no
mínimo manter – e tentar aperfeiçoar - os critérios da Súmula no. 331 da CLT. É
o que tentamos fazer em nota de rodapé (9).
7.
É
interessante ampliar as hipóteses de terceirização interna?
Essa discussão ganhou corpo com
um projeto do deputado Sandro Mabel, e, mais recentemente, em processo
judicial, que na época desse texto ainda tramitava no Supremo Tribunal Federal.
Entre vários outros argumentos –
que em geral se lembram da liberdade de empresa, mas se esquecem de sua função
social – alega-se que a distinção entre atividade meio e atividade fim é
artificial e gera dúvidas. Ignora-se, de forma conveniente, o princípio do in dubio pro operário(10), que manda decidir a dúvida a favor do empregado...
Ora, se ampliarmos as hipóteses
da Súmula 331, o mais provável é que a
terceirização se espalhe por todos os cantos, com todas as suas trágicas
consequências. E, nesse caso, não só o trabalhador se veria – para sempre –
transformado em mercadoria, com todas as consequências objetivas e subjetivas
desse fato, como o Direito do Trabalho sofreria o mais forte dos abalos.
É que a terceirização é também um
discurso: ela aponta para um novo paradigma,
um novo modo de pensar e de fazer as leis, uma nova lógica entre o capital e o
trabalho. É um símbolo, e por isso também um aceno, um convite, sinalizando
para o desmonte progressivo das conquistas operárias. No mínimo, o trabalho se
veria refém por inteiro – ou em muito maior escala - do capital.
De fato, num contexto assim, de
autêntica e generalizada marchandage,
qual sentido assumiria o princípio da proteção? E quais outras criaturas
estranhas não entrariam depois por aquela porta? Como fazer valer a CLT, se até uma pequena lei, ou uma simples
súmula, for capaz de desafiar e até de ridicularizar a própria essência do
Direito do Trabalho? Qual seria a postura dos novos juizes, ao aplicar as
antigas normas, se até mesmo o trabalho indigno se naturalizaria, a ponto de se
tornar uma regra jurídica?
E como evitar novas investidas
aviltantes se o Direito do Trabalho, em última análise, estaria todo impregnado
e deturpado pela idéia da terceirização? Como pretender que o sindicato atue, ajudando a criar e a reforçar o Direito
estatal, se esse mesmo Direito conspira contra ele? O que esperar desse novo
trabalhador – em seus variados papéis de empregado, pai de família ou cidadão
que constrói seu país – se ele se vê ou se sente não como homem inteiro, mas
como um homem-coisa, que pode até acabar
se habituando com isso?
São coisas para se pensar.
REFERÊNCIA
1)- Esse
fato se repetiu várias vezes na audiência pública promovida pelo TST sobre o
tema, quando os críticos da terceirização se referiam a uma de suas formas, e
os seus adeptos respondiam com a outra. Mas outras vezes uns e outros também
misturavam os conceitos, como se fossem uma coisa só.
2)- Olea, Alonso. Introdução ao Direito do
Trabalho. Coimbra: Alamedina, 1965, passim.
3)- A expressão é conhecida; escapa-nos o nome de
quem a criou.
4)- Veja-se, a propósito, especialmente a obra de
Foucault.
5)- É claro que outros fatores também atuam, como a
própria ideologia.
6)- Até certo ponto, na prática, a ênfase em
direitos como os de não discriminação, preservação da intimidade e outros do
gênero, que não implicam distribuição de renda, parece abrir uma espécie de
crédito para que se reduza a importância dos chamados “direitos sociais”. A
propósito, cf. o nosso texto: Direito Civil x Direito do Trabalho: caminhos que
se cruzam. In: Reis, Daniela Muradas et alii (coord.). Trabalho e Justiça
Social: um tributo a Mauricio Godinho Delgado. São Paulo: LTr, 2014.
7)- Nesse sentido, ensina Tarso Genro que ele carrega em suas entranhas não só “os germes
de resistência dos dominados”, mas traços da opressão dos dominadores (Direito
Individual do Trabalho. S. Paulo: LTr, 1994)
8) O título da obra – que deve ser publicada em
breve – é: Terceirização e Acidentalidade (Morbidez) no Trabalho: uma estreita
relação que dilacera a dignidade humana e desafia o Direito. Ainda sobre o
tema, outra doutrinadora que merece seer lida é Gabriela Neves Delgado (vejam-se
especialmente, de sua autoria: Direito Fundamental ao Trabalho Digno. São
Paulo: LTr, 2006. e Terceirização:
paradoxo do direito do trabalho contemporâneo. São Paulo: LTr, 2003.
9)- Em sintese, como também já escrevemos, eis
algumas conclusões específicas :1) A
terceirização externa (de atividades empresariais) se rege pelo art. 2º § 2º da
CLT; 2) A norma acima referida deve ter leitura expansiva, de modo a abarcar os
grupos de formação horizontal e a abranger formas mais sutis ou disfarçadas de
agregação empresarial; 3) A terceirização interna (de serviços) está
disciplinada em parte pela legislação extravagante e completada pela Súmula no.
331 do TST, que a ela também se refere; 4)O ideal seria proibir qualquer forma
de terceirização interna que fugisse aos termos precisos daquela legislação;
5)Não sendo isso possível, os critérios daquela Súmula devem prevalecer como
regra geral, mas podem ser aperfeiçoados; 6)Para aperfeiçoá-los, parece-nos
importante: a) Adicionar ao critério que separa as atividades meio das
atividades fim o critério da precarização das condições de trabalho e/ou
salário, de tal modo que, mesmo em se tratando de atividade meio, a relação, no
caso, formar-se-ia com o tomador; b)Em casos de dúvida, aplicar o princípio da
norma mais favorável (in dubio pro operario); c) Evitar a redução dos conceitos
de subordinação e pessoalidade, para concluir se a terceirização é lícita ou
não; d) Estender a todos os terceirizados o princípio da isonomia das condições
de trabalho e salário; e)Reforçar as normas existentes, garantindo
explicitamente aos terceirizados o grau necessário de segurança e higiene no
trabalho; f)Substituir o critério da responsabilidade subsidiária pelo da
responsabilidade solidária; g) Aplicar o critério da solidariedade entre contratante
e contratada não só no caso da terceirização lícita, mas na hipótese de
terceirização ilícita, independentemente do reconhecimento do vínculo de
emprego com o tomador; h) No caso de uma
cadeia de tomadores e fornecedores, aplicar o critério de solidariedade entre
todos; i) Proibir a terceirização no
curso da greve, salvo na hipótese do art. 9º. § 1º., da Lei no. 7783; j)
Proibir a terceirização nos seis meses que se sucederem a despedidas coletivas.
7) No plano coletivo: a) Construir uma interpretação que permita que o
sindicato representativo dos terceirizados possa ser, indistintamente, tanto o
que tem como correspondente o sindicato das empresas fornecedoras de mão de
obra, como o que tem como correspondente o das empresas tomadoras de serviço;
b) Não se considerando isso possível, que se procure construir uma
interpretação que insira os terceirizados em sindicatos dos trabalhadores nas
empresas tomadoras de serviço; d) Não se considerando nenhuma das hipóteses
como viáveis, que se assegure de todo modo aos terceirizados, ainda que sejam
abrangidos por convenção ou acordo coletivo diferente, as mesmas condições de
trabalho e de salário dos trabalhadores da tomadora, caso estas se lhe revelem
mais benéficas. 8) No plano da administração pública: a) Tentar construir, no
futuro, a idéia da presunção relativa de
culpa da Administração, na hipótese de inadimplemento das verbas trabalhistas
por parte da empresa contratada; b) No presente, adotar como critério, para
aferir sua responsabilidade, a perfeita adequação do órgão público às normas
que disciplinam o processo de licitação e à
fiscalização que deve acompanhá-lo, no tocante ao cumprimento das
obrigações trabalhistas e previdenciárias. 9) Como princípio geral: manter uma postura sempre restritiva no
tocante às terceirizações internas (de serviços), sejam elas quais forem, e um
olhar sempre crítico e vigilante em relação às terceirizações externas (de
atividade empresarial). Para além do Direito: estender a luta contra a
precarização para o circuito do consumo, através de práticas como o boicote.
10) A
terminologia é de Plá Rodriguez. O nosso grande Maurício Godinho Delgado
prefere inseri-lo no princípio da norma mais favorável.
(*) Márcio Túlio Viana, ex-Magistrado do Trabalho,
aposentado, jurista e atualmente professor na Pós-Graduação da PUC-Minas
(Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais).
[1] O título da obra – que deve ser
publicada em breve – é: Terceirização e Acidentalidade (Morbidez) no Trabalho:
uma estreita relação que dilacera a dignidade humana e desafia o Direito. Ainda
sobre o tema, outra doutrinadora que merece seer lida é Gabriela Neves Delgado (vejam-se
especialmente, de sua autoria: Direito Fundamental ao Trabalho
Digno. São Paulo: LTr, 2006. e Terceirização: paradoxo do direito do trabalho contemporâneo.
São Paulo: LTr, 2003.
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